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"Já não posso com as cidades extraordinárias" Imprimir E-mail

Público, Luísa Pinto, 09.10.04

O geógrafo Álvaro Domingues, professor na Faculdade de Arquitectura do Porto, deixa duas ideias-chave aos autarcas que vão ser eleitos. Que não se foquem só nos centros históricos e olhem para o resto da cidade ordinária. E que deixem de pensar em infra-estruturas para se dedicarem antes ao software dos equipamentos.

As nossas cidades estão a ficar mais bonitas ou mais feias?
Algumas generalidades que se dizem sobre a boa e a má relação do que é urbano são fenómenos de nostalgia e da suposta perda de uma certa ideia de cidade. Outras vezes são de incompreensão. A ideia de que as cidades crescem como mancha de óleo, quando crescem por pulverização. Leiria foi crescendo como uma via láctea. Por um lado, o centro histórico e o Polis; por outro, foi crescendo pelo que eu chamo "Rua da Estrada", ao longo da Estrada Nacional 1, com os seus edifícios-montra... Mas nos media os ataques de nervos foram sobre o centro histórico. Quanto ao resto, e a tudo o que é construído, ninguém vê.

Porque é que isso acontece?
É assim em todo o lado. Em Guimarães, património da humanidade, onde trabalhei, eu digo: "Já não posso com isto". Guimarães sempre teve mais de dois terços da população e do emprego fora do perímetro urbano. E sempre acharam normal; agora cavou-se uma trincheira. Só se preocupam com o centro histórico, com a cidade extraordinária. Do outro lado da trincheira, está a cidade ordinária, a genérica, que não tem marca e ninguém vê... As pessoas agarram-se ao que acham que conhecem, e, à medida que vai aumentando o trauma da perda da cidade extraordinária, aumenta a amnésia do resto. Por isso acho que os investigadores, e o planeamento, se devem centrar nesta área da cidade, que da outra já há muito quem se ocupe.

Na sua reflexão sobre a Cidade-Providência, viu que os municípios aplicaram as mesmas receitas e construíram equipamentos redundantes.
Por isso digo que esta nova leva de autarcas precisa de entrar num novo ciclo. A ideia mobilizadora é entrar no ciclo dosoftware, que ohardware já está. Os desafios são os de como tornar as coisas funcionais, por exemplo escolas que não têm alunos, ou atender a novas procuras, como o envelhecimento da população.

E prioridades em termos de planeamento? Não concorda que tem sido no planeamento, e na urbanização de terrenos, que se faz mais dinheiro e que é aí que as autarquias têm grande fonte das suas receitas?
A tradição da administração pública portuguesa é extremamente burocrática e centralista. Em todos os PDM, desde os da primeira geração aos da segunda, não houve um milímetro das chamadas Reservas Agrícola e Ecológica que não fosse sancionado pelas direcções-gerais... Não podemos dizer que somos todos uns inocentes e uns santos e que os ladrões estão todos no poder local, isso não é verdade. Por outro lado, há processos que, do ponto de vista político, deslegitimam a continuidade dos solos agrícolas e ecológicos, que é, por exemplo, os PIN.

Transformar solo agrícola e urbanizável, é ou não é fazer dinheiro?
O mundo rural é muito bonito na cabecinha das pessoas que não passaram por ele. Hoje, não existe razão nenhuma para cultivar uma parcela agrícola, que, se forem feitas as contas, leva a perder dinheiro. Abre-se uma crise de legitimidade: a lei preserva a REN, mas o mercado não cauciona o valor dessa reserva. Não fujo à questão, e às suspeitas de corrupção. Vai haver corrupção sempre, mas recuso-me a achar que ela está circunscrita ao imobiliário. O que eu sei é que se para um município a transparência dos processos for uma bandeira, ela será mais fácil de aplicar no urbanismo do que muitas outras.


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