Expresso, 12.09.09, Clara Ferreira Alves Sou uma coleccionadora de cidades. Prefiro-as à grande natureza, que acho vagamente opressiva. Uma cidade no Outono, quando a gente regressa de férias, é um prazer. Uma cidade são cafés e esplanadas, ruas cheias de movimento, lojas bonitas, lojas abertas fora do horário, transportes públicos de qualidade, variedade da população, imigrantes integrados, jovens moradores, parques e jardins, ruas arranjadas, bicicletas e transportes alternativos, estacionamento adequado, moda de rua, livrarias com cafés lá dentro, restaurantes e bares, museus e bibliotecas, exposições e concertos, teatros e clubes, propostas exóticas e ambiente protegido.
Uma cidade tem de ter um jardim em cada bairro, população jovem,
crianças e velhos, alegria nas ruas, pequeno comércio, oferta cultural,
carros afastados dos centros. Entre outras coisas.Quando desembarco em
Lisboa tenho sempre a sensação de uma apatia que mergulha a cidade
nessa melancolia que alguns cantam e que é sintoma das doenças da
capital. Desembarcar na Portela num domingo e fazer uma viagem de táxi
por Lisboa, a ouvir um relato de futebol aos berros, é uma experiência
terminal. Em alto contraste com a chegada a uma capital europeia. A
terra de ninguém das Avenidas Novas, o inconcebível monumento a Sá
Carneiro no Areeiro, os caixotes vidrados da Avenida da República e da
Fontes Pereira de Melo, as árvores sombrias do Campo Grande, o desapego
ventoso do Parque Eduardo VII, as lojas fechadas da Avenida da
Liberdade, a deserção da Praça dos Restauradores (mais feia do que
nunca), o vazio e decrepitude das ruas da Baixa, levam-me a pensar o
que terá acontecido durante todos estes anos para Lisboa ter chegado a
este estado vil.
Com excepção do Chiado e do Bairro Alto, onde se ouve música e se vêem
jovens e não velhos com ar abatido, e da LX Factory (condenada a prazo)
toda a Lisboa é uma neura, a neura de que falava Cesário Verde. Quem
conhece outras cidades sabe que a cidade é o lugar onde se vê o futuro.
Vê-se o que vai acontecer. Em Lisboa vê-se o passado. Em certos
domingos, a Lisboa de certos bairros é a Lisboa do tempo de Salazar, a
Lisboa das fotografias a preto-e-branco do Estado Novo. A Lisboa da
Morais Soares e da Almirante Reis, de Arroios e do Campo Santana, do
Conde Redondo e da Duque de Loulé, da Mouraria e dos Anjos, de
Alcântara e do Rato (seria possível fazer pior do que o Rato?), da
Estrela e da Lapa. Uma Lisboa silenciosa e posta em sossego, com ruas
esburacadas e mal calcetadas, carros estacionados em todos os espaços,
velhas que espiam nas janelas, homens que cospem para o chão quando
passa a carrinha funerária. E cheiro a chichi de gato, como dizia o
Solnado. Com excepção do Chiado, que teve um princípio de esforço de
“colonização”, e do esforço inacabado do Bairro Alto (graças à visão,
entre outros, do empresário Manuel Reis), e do bairro de Campo de
Ourique ou das ruas adjacentes à Avenida de Roma, tudo o resto mudou
pouco em 35 anos. A Expo melhorou a zona mas não é mais do que um
subúrbio de luxo. Os condomínios privados espalharam-se e os centros
comerciais também, matando a vida das ruas, eliminando os cinemas,
eliminando os cartazes e os néons. Eliminando a vida. Sobram bancos,
que matam as fachadas, e medonhos edifícios públicos e escritórios.
A oferta cultural é infinitamente maior e apesar disso a Baixa é um
deserto e o Terreiro do Paço uma área de desastre. A Lisboa à
beira-Tejo está tomada por monstruosidades e pelo porto, e o metro,
esse modo simples e rápido de deixar o carro à porta, anuncia com
estalo que irá até às Amoreiras. Daqui a uns anos. Como se fosse uma
grande novidade. Os moradores de Lisboa têm mais dificuldade em
deslocar-se dentro de Lisboa do que os da Pontinha.
Várias cidades, de Istambul a Edimburgo ou Sevilha, de Dublin a Berlim
e Praga, apostaram nos eléctricos rápidos como meio de circulação. A
preocupação ‘verde’ reina. E os novos empreendedores conseguem ‘furar’
e abrir pequenas lojas e bares, cafés e galerias, cabeleireiros e
restaurantes que atraem os jovens, enfeitam as ruas e as alegram.
Lisboa, fora do centro histórico e do parque temático para turistas,
não passa de um desolado subúrbio.
Em vez de mais planos megalómanos e estratégias o que Lisboa precisa é
de micromanagement. Serviços decentes, transportes ‘verdes’, proibição
de mais centros comerciais e condomínios privados, atracção da
população jovem, recolha e reciclagem do lixo, plantação de árvores,
incentivos aos novos empresários e comerciantes, regulação do mercado
da habitação e escritórios, arquitectura integrada, responsabilidade
dos moradores e proprietários no governo dos bairros. Substituir os
carros de vez. Será assim tão complicado?
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