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Terrenos públicos podem valer milhões Imprimir E-mail

in Expresso, 05.04.2009, Paulo Paixão

O secretário de Estado do Tesouro e das Finanças, Carlos Costa Pina, pediu directamente à Câmara de Lisboa a adequação do Plano Director Municipal (PDM) aos interesses financeiros do Governo. Segundo informações a que o Expresso teve acesso, o membro do Executivo solicitou, para um conjunto de casos, a alteração do uso do solo (definido pela autarquia, em sede de PDM) para permitir uma valorização de terrenos ou de edifícios na posse do Estado ou propriedade da holding estatal Parpública, que serão alienados.

Em alguns pedidos, dirigidos ao vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, o Governo quer facturar a todo o custo. Por exemplo, num terreno de seis hectares, junto à Segunda Circular, frente às Torres de Lisboa. Segundo uma proposta de revisão do PDM, do conhecimento do Governo, aquele espaço estaria destinado à fruição pela população. Mas o recado enviado é claro: “Não deverá ser aprovado, por trazer graves prejuízos para o Estado, o previsto actualmente (...), ou seja, a afectação deste imóvel para área verde de recreio e lazer”.

O terreno, junto ao Lar Maria Droste, é um dos imóveis colocados à venda pela Estamo (empresa do grupo Sagestamo, controlada pela Parpública, que detém os imóveis do Estado). O actual PDM atribui ao espaço a categoria de equipamento e serviço público — uso entretanto já desafectado. Esteve à venda em finais do ano passado por €39,9 milhões. Um preço de ocasião, pois antes fora colocado no mercado por €45 milhões, mas nunca surgiram compradores. Ontem, era visível no local uma placa a dizer ‘Vende-se’. Por telefone, foi dada a informação de que será novamente licitado nos finais de Abril.

O relevante desta história é que, recentemente, eventuais compradores foram aliciados com a promessa de tratar-se de um lote “para construção”. Algo que legalmente nunca foi possível. E só o será se a Câmara alterar o PDM de acordo com a pretensão do Estado.

O gabinete de Costa Pina iludiu um conjunto de questões (colocadas por escrito, pelo Expresso, a pedido da assessoria de imprensa). Ficaram por responder perguntas sobre o contacto com a autarquia ou o pedido para alteração do uso do solo. No depoimento, o gabinete do secretário de Estado afirma que o Ministério das Finanças “prestou informação à Câmara, num quadro de lealdade e colaboração institucional na prossecução do interesse público geral e local”.

Manuel Salgado, por seu lado, desmentiu contactos. “Não há qualquer pedido. Nunca o secretário de Estado (Carlos Costa Pina) falou comigo sobre essa matéria”, disse o vereador, repetindo mais tarde a ideia. Salgado esclareceu que as conversações com o Governo sobre o destino a dar a património do Estado foram mantidas com a Sagestamo e os ministérios da Defesa e da Saúde (alguns dos imóveis foram quartéis e hospitais). A Câmara definiu como método “apreciar todos os casos em bloco e não um a um”, sendo que a autarquia coloca condições em cima da mesa: cedência de áreas para espaços verdes, estacionamento e vias, o que faz com que o índice de construção nunca seja o máximo; e colocação no mercado de parte da habitação a custos controlados.

Salgado admite diferença de pontos de vista sobre o destino a dar a alguns imóveis — caso do Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL) —, mas remete a discussão para a “negociação, onde há sempre duas posições”. Fora disso, remata, “nunca ninguém nos veio pressionar”.

Contudo, o Governo tem ideias bem claras. Na dúzia de casos para os quais pretende uma alteração do uso do solo está um triângulo junto à Avenida de Berna. Entre uma parte do Hospital Curry Cabral (35 mil m2), a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), da Universidade Nova de Lisboa (confinante com o primeiro), e um ex-edifício militar (contíguo), entretanto cedido à universidade, estão cinco hectares.

Para os três imóveis, uma proposta de revisão do PDM prevê equipamentos de utilização colectiva. Mas o Governo garante a desafectação daquele uso e pretende erguer edifícios com utilização colectiva mista (habitação e escritórios). E para que não fiquem dúvidas, em relação à FCSH e ao prédio adjacente, diz: “A proposta de revisão do PDM ainda mantém o uso para equipamento e serviços públicos, o que prejudica gravemente o valor patrimonial do imóvel”. A viabilidade de novos usos passa, entre outras condições, pela saída da faculdade, que ficaria no futuro Campus de Campolide (com ocupação eventual do EPL).

Os 30.163 m2 do terreno do Laboratório Nacional de Investigação Veterinária, à Estrada de Benfica, motivam um apetite voraz. A Câmara chegou a pensar em equipamentos e serviços públicos; o Governo, repetindo a arenga, diz que a opção da autarquia “prejudica gravemente o valor patrimonial do imóvel” e pretende apartamentos.

O ex-hospital do Desterro, o antigo Convento do Desagravo ou o Complexo desportivo da Lapa são outros dos espaços para os quais o Governo pretende mais-valias, através de um aumento da edificabilidade.

Juristas dividem-se

João Pacheco Amorim, professor da faculdade de Direito da Universidade do Porto, afirma que a iniciativa do Governo “é uma intervenção que tenta influenciar o poder local, numa área de competência das autarquias”. Não entrando em pormenores, levando apenas em linha de conta a situação genérica que lhe foi descrita, o jurista diz tratar-se de “um acto ilícito. Não há um proveito, até porque ao pretender-se mais receitas há uma defesa do interesse público. Mas é uma interferência clara do poder central, de forma que a lei não prevê” (através da tutela). O especialista em Direito Público não vê, para já, qualquer “ilícito criminal. É um procedimento apenas censurável no plano ético e político”.

Mas Pacheco Amorim admite que pode ser “o primeiro passo para o vício de desvio de poder. Este dar-se-á se o município vier a atender os pedidos, a menos que haja outro motivo determinante para se chegar ao quadro solicitado pelo Governo”. Trocando por miúdos: se houver estudo técnicos que proponham idêntica solução à preconizada nos pedidos de alteração de uso de solo. Em caso de desvio de poder, a situação poderá gerar “consequências invalidantes da decisão municipal”, salienta.

Em síntese, o quadro configura “um sacrifício dos interesses urbanísticos da autarquia a interesses financeiros”. Rematando, “nem os bons fins (que seriam o aumento de receitas do Estado) justificam todos os meios”, diz Amorim.

Perante os mesmos factos, descritos de forma idêntica, Pedro Gonçalves, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, tem opinião diferente. Quase oposta, mesmo. Concedendo que pode haver “uma pressão incomportável para o município, por um eventual excesso da intervenção do Estado”, Gonçalves recusa a tese de uma situação “ilícita”. “É legítimo que o Estado zele pelo bem comum e é do interesse público valorizar o seu património”.

Gonçalves introduz a dimensão do “Estado-proprietário. que tem o direito de rentabilizar o seu património”. No exercício dessa prerrogativa, o docente universitário só vislumbra um aspecto discutível: o facto de a intervenção ser feita “fora do momento procedimental”, pois não decorre a discussão pública.

Quanto ao que está genericamente em causa, o especialista em Direito Administrativo salienta que “a autarquia deve tomar as suas decisões sem pressões”. E para a aquilatar do mérito daquelas, não há uma bitola única. “É preciso ver, caso a caso, as respostas da Câmara, Se houver pedidos desmedidos do Estado que sejam aceites, a conclusão é uma. Mas se a pretensão for acomodada sem grande perturbação de outros interesses, a conclusão já deve ser outra, não há nisso qualquer mal”.

Gonçalves conclui: “Não me importo de ter um Estado com várias frentes, com pesos e contrapesos. As Finanças puxam pela valorização do património; outros ministérios e instituições devem, por exemplo, defender o Ambiente e o Urbanismo”.

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