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A nova Reserva Agrícola Nacional Imprimir E-mail

Público, 23.06.2009, Henrique Pereira dos Santos, Arquitecto paisagista

O Público trazia no dia 8 de Junho um artigo do secretário de Estado do Desenvolvimento Rural e Florestas, Ascenso Simões, que anunciava a entrada da Reserva Agrícola Nacional na sua idade adulta. Hoje cumpre-me o doloroso dever de anunciar que, infelizmente, a Reserva Agrícola Nacional [RAN] sofreu um enfarte, estando internada nos Cuidados Intensivos, onde estão a ser feitos todos os esforços para a recuperar e a devolver a uma vida calma e sem sobressaltos.

Apesar da delicadeza da situação, gostaria em primeiro lugar de falar da minha alegria em ver finalmente o Governo discutir as soluções que aprovou procurando melhorar o anterior regime da reserva agrícola, que bem precisado estava de alguma atenção.

Alargar esta discussão para encontrar as melhores soluções legislativas para a conservação das raras áreas do país com solos agrícolas de primeira qualidade - provavelmente cerca de 10 por cento do território de Portugal - é o objectivo de uma petição posta a circular e da qual sou o primeiro subscritor (http://www.peticao.com.pt/reserva-agricola-nacional)(1).

O primeiro problema da actual legislação, que prolonga anos a fio de gestão errada da Reserva Agrícola Nacional, é considerar que a RAN é um instrumento de política agrícola. A actividade agrícola não precisa de um instrumento legal de reserva dos melhores solos agrícolas porque o seu valor para a actividade os torna naturalmente atractivos para quem pretende produzir alimentos.

A RAN é um instrumento de ordenamento do território que pretende ajudar a resolver uma falha do mercado de solos: o valor agrícola de um solo, no curto prazo, não tem qualquer hipótese de concorrer com o valor do espaço para várias outras actividades que, conjunturalmente, estão dispostas a pagar muito mais pelo espaço.
Para a urbanização, para a indústria, para as superfícies comerciais, para equipamento, para infra-estruturas o valor produtivo do solo é mais ou menos indiferente, mas o valor da localização pode ser elevadíssimo.

Mas se amanhã precisarmos de produzir mais alimentos do que hoje produzimos, por exemplo, se o custo do petróleo tornar mais difícil importar alhos da China, tomates da Holanda, milho dos Estados Unidos, soja do Brasil ou carne da Argentina, corremos o risco de ter hipotecado o potencial produtivo dos nossos melhores solos, ocupando-os com actividades que poderiam ter outras localizações.

É este o objectivo da RAN e este é um objectivo de ordenamento do território e de viabilidade do futuro.
Os solos agrícolas são um valor patrimonial, mesmo quando o mercado temporariamente não o reconhece no preço que estabelece para o solo agrícola num determinado momento.

Pretender que um património pode ser defendido quando logo à cabeça da sua identificação, isto é, na delimitação da RAN, devem ser tidas em atenção os outros usos que competem pelo espaço é o mesmo que dizer que antes de classificar o Mosteiro da Batalha se devem retirar todas as áreas que pudessem ser úteis para outros usos e classificar o restante. O que é um absurdo, mas é a solução adoptada no diploma da RAN.
Com certeza pode haver conflitos de uso que justifiquem o sacrifício de solos de RAN, mas essa deve ser a solução excepcional e não a regra.
Argumentar que os mecanismos anteriores de gestão destes conflitos eram maus e funcionavam mal para acabar com o princípio da excepcionalidade é uma curiosa maneira dos responsáveis pela má gestão se ilibarem das responsabilidades pela má gestão do passado e é uma má solução para o país.

Argumentar que se usa na legislação um novo conceito de classificação de terras, mais robusto e perfeito, o que é verdade, mas omitir que alterando o conceito de actividade agrícola para incluir a florestação, como faz este diploma, se esvazia tecnicamente o tal novo conceito de classificação de terras, não parece muito sólido. Para além do facto de este novo conceito não estar cartografado em Portugal na escala exigida pelo diploma. E nem irá estar nos próximos anos pelo simples facto da sua maior solidez e perfeição resultar de uma complexidade técnica a que o Estado não terá capacidade para dar resposta durante anos.

Argumentar que sempre é melhor florestar os melhores solos que deixá-los ao abandono, reduzindo assim o risco de incêndio e ao mesmo tempo ser responsável por não incluir satisfatoriamente nos instrumentos financeiros de apoio ao mundo rural o pagamento dos serviços ambientais prestados pela agricultura, não parece conduzir a discussão para um campo franco, aberto e sério que permita encontrar as melhores soluções para os objectivos que se pretendem.

Há um detalhe do artigo do sr. secretário de Estado que merece correcção factual: "foi questionada a permissão legal de, na proposta de elaboração da delimitação da RAN, ser reflectida a necessidade de exclusão de áreas com edificações licenciadas". Independentemente de não se perceber esta norma legal - por definição, o edificado não tem potencial agrícola e portanto não faz parte da RAN - o que foi contestado é que a futura intenção de urbanização condicione a delimitação da RAN.

Toda a fundamentação desta estranha concepção de conservação patrimonial - primeiro omite-se o valor patrimonial do que interessa e depois conserva-se o que não precisa de medidas de protecção por não ter ameaças - se baseia num conjunto de normas e em legislação, só que a maior parte desta legislação não só não é aplicada como é identificada, com frequência, como a origem de uma grande parte da corrupção existente no país.

Acredito que seja intenção dos legisladores ter um melhor diploma de gestão da RAN. Essa é também a intenção das mais de 2500 pessoas que já assinaram a petição que pede à Assembleia da República uma coisa simples: que se reabra a discussão para se encontrarem soluções legais melhores que estas, inegavelmente más, mesmo que bem intencionadas.

1) A petição é lançada e dinamizada pela Quercus, da qual eu não sou membro nem colaborador habitual

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